Em homenagem ao dia da Consciência Negra eu trago para vocês um conto de um escritor que amo de paixão - Joel Rufino dos Santos.
Para quem não conhece, Joel Rufino dos Santos (Rio de Janeiro) é negro, é historiador, professor e escritor brasileiro.
É um dos nomes de referência sobre cultura africana no país.
Nascido no bairro de Cascadura ( foi meu vizinho), cresceu apreciando a leitura de histórias em quadrinhos.
Já adulto, foi exilado por suas idéias políticas contrárias à ditadura militar então em vigor no país. Morou algum tempo na Bolívia, sendo detido quando de seu retorno ao Brasil (1973).
Doutor em Comunicação e Cultura pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), onde lecionou Literatura, como escritor tem extensa obra publicada: livros infantis, didáticos, paradidáticos e outros. Trabalhou como colaborador nas minisséries Abolição, de Walter Avancini, transmitida pela TV Globo (22 a 25 de novembro de 1988) e República (de 14 a 17 de novembro de 1989).
Além disso, já ganhou diversas vezes o Prêmio Jabuti de literatura, que é o mais importante no país.
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Esta história se passou há mais de cem anos, num tempo em que tudo era possível, ninguém se espantava com nada.
Num engenho de açúcar viviam dois meninos: um era filho do dono e se chamava Ricardo. O outro era escravo e tinham esquecido seu nome, só o chamavam de moleque. Moleque pra lá, moleque pra cá.
O moleque fora comprado bem novinho no mercado. Seu trabalho ia ser brincar com o filho do dono, brincar de todo jeito: jogar dama, soltar pipa, rodar arco que era uma brincadeira muito apreciada naquele tempo e de cavalinho – Ricardo montava e o moleque era montado. Saíam os dois pelo terreiro:
- Upa, upa cavalinho, gritava Ricardo.
O dono do engenho olhava aquilo e esfregava as mãos:
- Esse moleque foi a melhor compra que já fiz, mulher. Olha nosso filho como está feliz!
Vai que num domingo de manhã, estando de folga, o moleque entrou no mato para pegar passarinho. Ele pegava um pedaço de pau e passava visgo para o coitado pousar e ficar preso. Naquele domingo porém, o sol já estava no alto e nada...
- Vou lhe ajudar, disse uma voz rouca.
Tinham explicado ao moleque que se ouvisse uma voz rouca longe de casa, tomasse cuidado. Podia ser a onça Gomes ou Quibungo, ou Ipupiara ou o João do Mato.Essas criaturas horrendas tinham lá suas razões para não gostarem de gente.
- Quem é você? – perguntou o moleque. Mostre sua cara.
Quem apareceu foi Ossanha. Usava um cocar e um saiote de penas, mais não era índio. Sua pele era negra, quase azul. Não tinha uma perna e não tinha um olho, perdidos numa briga com Xangô.
No começo de tudo, o criador que se chama Olorum, tinha dado a cada filho uma parte do mundo. Para Ossanha deu a floresta:
- Você cuida das plantas. Umas servem para comer, outras para fazer remédio e outras para enfeitar a casa. Quando alguém precisar, atenda.
O que fez Ossanha? Guardou as plantas só para si.
- Está em falta, mentia quando alguém procurava.
Seu irmão Xangô quando soube, chamou Iansã que cuidava dos ventos:
- Onde já se viu? Dê um castigo para esse egoísmo.
Iansã se aproximou como quem não quer nada, Ossanha se distraiu e ela abanou com a saia o horto particular do orixá egoísta. Foi a maior ventania! Quando acabou, as plantas tinham se espalhado pelo mundo. É por isso que Ossanha está em todo lugar que tem mato, recolhendo as plantas que Iansã espalhou.
O moleque que conhecia a história não teve medo:
- Como é que o senhor/senhora vai me ajudar?
Senhor/senhora porque Ossanha é as duas coisas.
- Tome esse visgo, é da nossa terra. Com ele você vai pegar o pássaro Cora , já viu um?
- Não.
E foi o que aconteceu. O pássaro Cora era um espanto! Vinha gente de longe apreciar o seu canto – criadores de pássaros, viajantes, naturalistas, gente de outros países, do governo, da igreja...
O pássaro do moleque aprendia o que se ensinava. Bastava assobiar uma vez perto da gaiola e ele imitava. Começaram a botar preço na maravilha. O moleque recusava. Se aceitasse, teria dinheiro para jogar na cara de seu dono e dizer:
- Olha aqui, compro a minha liberdade e pode ficar com o troco.
Mas o moleque dizia não. Não vendo, nem troco por dinheiro do mundo. O senhor partiu para a ameaça:
- Se não me vender esse passarinho, te arranco a pele.
O moleque sorria com o canto dos lábios.
- Se não me vender essa porcaria, te aplico os anjinhos.
Anjinhos eram uns anéizinhos de ferro para apertar os dedos e doía como o diabo!
- Se é uma porcaria, por que o nhô quer comprar? Era só o que ele dizia.
Quando o menino estava de castigo, o Cora não cantava.
Até que um dia, o senhor perdeu a paciência. Resolveu vender o moleque para outro senhor.
- Vai ser bem longe daqui que não quero ver a tua cara na minha frente e nunca mais ouvir a voz desse passarinho.
Ricardo, o filho do dono, ficou triste, ficou doente e pediu:
- Não vende, pai. Há tempos que o escravo sou eu. Eu é que dependo dele pra tudo, não sei mais brincar sozinho.
O pai não escutou, vendeu o moleque. O comprador veio buscá-lo a meia-noite. Ricardo estava tão triste que não teve coragem de se despedir do moleque.
- Ele vai alegre – pensou – porque tem o Cora. Eu fico triste porque não tenho nada.
No outro dia de manhã, quando se levantou e abriu a janela, o menino Ricardo teve uma surpresa: do lado de fora tinha uma gaiola pendurada.
Assim que viu o menino, o Cora começou a cantar.